A Catedral
No inverno, cedo, quando a rua ainda estava escura, eu ia até
o ponto de ônibus para pegar o 21. Sempre era mais demorado do que o RER, mas andar
de ônibus e ir observando a cidade é muito mais agradável.
Assim que o motorista abre a porta, entro e sento na janela
para ir aproveitando a paisagem.
O trajeto é ótimo. Sai da Cité Universitaire e vai descendo
pela Amiral Mouchez, passando pelo simpático bairro 14ème. Paisagem absolutamente
não turística. Pessoas e comércio “normais’, sem aquele “glamour’ que as
pessoas sentem ao ver a bela Paris.
Mesmo assim, eu gosto. Fico observando
aquele entra e sai de gente. No ponto da Glacière muita gente sai para pegar o
Metrô, a linha 6.
Paris acorda tarde. O trânsito ainda não está impossível. O
ônibus vai tranquilo e só disputa a sua faixa com os ciclistas matutinos.
Chegamos ao 6ème. Adoro esse bairro!
Não desço logo do ônibus. Sigo adiante. Passamos pelo
Luxemburgo. Ali sempre desce também muita gente. O Luxemburgo abre seus portões
cedo, mas ainda tem pouca gente circulando.
As lojas, na sua maioria, ainda não abriram. Algumas, como as
de souvenirs, já colocam suas araras nas ruas, com todas aquelas mercadorias
que viram “lembrancinhas” nas malas dos viajantes. Tem de tudo, lenços,
echarpes, cartões postais (quem ainda manda cartão postal?), muitos imãs,
paninhos de copa, moletons e por aí vai.
Descemos pelo Bd. St. Michel. Normalmente tão cheio e
movimentado na correria do dia-a-dia. A essa hora só vemos mesmo os estudantes
na Place de la Sorbonne e os ‘garis” que limpam as ruas e calçadas, deixando um
cheiro de sabão barato no ar.
Alguns cafés também já estão com suas portas abertas. Quase
sinto o cheiro do croissant fresco e do café expresso, típico café da manhã do
francês. Alguns bares também oferecem o ‘breakfast”= café + jus d’orange +
croissant (ou tartine). Mesmo tendo tomado o meu café da manhã em casa, me dá vontade
de parar e tomar outro, principalmente por causa do croissant fresquinho.
Na parada da rue des Ecoles eu já avisto o Musée Cluny e a
sua bela arquitetura medieval.
Sigo adiante, até o final do boulevard. Desço na Place St. Michel. Despeço-me do 21, que segue o seu destino, cruzando o Sena, a rive Droite até a Gare du Nord.
Eu atravesso a rua e vou pelo quai do rio, sentindo o vento
frio, que gela o meu nariz.
Dali já observo as duas torres que vão ficando cada vez
maiores à medida que vou me aproximando. A praça na frente da igreja ainda está
vazia. Tranquila.
Entro na Catedral sem dificuldade, nem fila, nem tumulto. Silêncio.
Escuro ainda. As luzes que passam pelos vitrais não são suficientes para
iluminar toda a catedral. Parece que está mais frio dentro, do que fora. Fico
constrangida com o barulho das minhas botas nas pedras. Tento andar devagar para
não chamar atenção, até chegar na nave central. Entro pela lateral e me acomodo
numa das cadeiras. Vão chegando outras pessoas, mais silenciosas do que as
minhas botas.
Segue a liturgia. Entre uma e outra palavra do sacerdote, a
gente só escuta o silêncio, interrompido por pequenos passos de um ou de outro,
que passa ao redor.
Gosto deste recolhimento. A oração flui. A Fé se fortalece.
Acaba a missa. Vou passando por detrás do altar, apreciando a
beleza dos tesouros ali depositados. É rara essa tranquilidade. O lugar é
sempre tão cheio de gente. Normalmente é uma fila só, que vai andando sem nem
dar tempo para observar tudo. Aproveito, então, cada minuto desse momento tão
raro.
Quando saio de lá, já se percebe o movimento da cidade. Uma
fila já começa a se formar do lado de fora, na porta de entrada. As pessoas vão
andando devagar, pacientemente, debaixo de chuva, sol ou neve.
Os cafés, as lojinhas de souvenirs e as tendinhas de crepe
por perto já estão a postos para receber os passantes.
Saio com o coração leve e com a música do silêncio ainda nos
meus ouvidos. A beleza da Catedral me envolve. Olho para trás e a vejo ali
majestosa.
Por tantas vezes ela nos foi abrigo, diversão, recolhimento,
cenário.
Lembro-me do concerto de Natal, quando enfrentamos uma
nevasca linda e lá dentro um frio ainda maior do que do lado de fora. Mas a música
dentro de um cenário tão maravilhoso aquecia a alma. Um concerto realmente
emocionante!
Por outras vezes, enfrentamos a multidão de turistas só para dar mais uma voltinha lá dentro, como quando fomos ver o presépio e as luzes do Natal.
Era divertido ver tanta gente na praça à sua frente. Ela ali
na sua grandiosidade a ser fotografada, por todos os ângulos, de todos os lados.
Aquele burburinho feliz de exclamações, gargalhadas e cliques e mais cliques
das telinhas. Poses engraçadas, casais apaixonados, excursões de japoneses,
chineses, coreanos e o que mais houver. Muita gente na pequena ponte lateral. Ali
é sempre um tumulto. Ou tem música, ou tem algum aventureiro fazendo malabarismos.
Muita gente ao redor, mas poucas moedas no chapéu.
Subimos nas suas torres. Programa sensacional que fizemos em família, com nossos filhos. Uma escadaria claustrofóbica. Lá em cima, o fôlego nos faltou, mais pela beleza do local e da paisagem do que pelos cansativos 400 degraus.
Sempre foi linda de todos os lados. Mas, eu gostava mesmo era
de passar pela Ponte de la Tournelle e observar de longe seus arcos monumentais
a segurar a parte central da igreja com a flecha que teimava em tentar alcançar
o céu. Era esta a minha visão preferida.
Quando soube do trágico incêndio, o vazio da saudade tomou
conta de mim. Saudade de momentos como esse. Saudade de pegar o ônibus 21, de fazer
todo o percurso, saudade de ver as ruas vazias, saudade do frio, do vento que
bate na borda do Sena, saudade da solidão da igreja vazia.
Acompanho, hoje, as discussões sobre a reconstrução da Catedral.
Não sei bem o que vai ser feito. O que sei mesmo é que na minha memória, vai
ficar a lembrança de momentos como as missas das manhãs de inverno, quando eu
tinha a impressão de que somente a Notre Dame estava acordada. Que ela acordava
antes de Paris. Como se, na sua imponência, passasse a mão pela cidade,
acordando todos aos poucos, iluminando, clareando, conforme o dia ia nascendo.
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